A Cidade Mãe
e a sua Província
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ABERTURA --- Esta crónica é integralmente dedicada a Benguela, no ano do seu 350º
aniversário. Foi feita a pedido do redactor principal, João Fernandes. Tenta apenas ser uma
modesta homenagem do cronista à terra onde nasceu e onde desejaria ser sepultado um dia. Foi
escrita com os farrapos da saudade a tremular nos bicos mais altos do coração, com as
reminiscências da infância a reluzirem nos quintalões da nossa memória. Dedico-a aos novos
de Benguela com o carinho de um patrício que, embora longe, não esquece a cidade que lhe serviu
de berço. Onde bebeu as vivências que agora atira para ao papel.
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1 - Benguela foi sempre berço de gentes bem portuguesas, foi sempre franca a colaboração com os
governos, mas os seus cidadãos, foram também e sempre, ciosos dos seus deveres e direitos, e,
através de todos os seus passos, o afirmaram desassombradamente.
Homens como Manuel de Mesquita que fundou o jornal mais antigo de Angola – “O Jornal de
Benguela”; Adolfo Pina, notável jornalista e fundador do diário “A Província de Angola”;
António da Costa com o seu prodigioso Cassequel a dar açúcar até hoje; Bernardino Correia a
fundar a Companhia Colonial de Navegação, quando a situação dos transportes marítimos
portugueses era precária nas ligações com as províncias ultramarinas, para drenagem dos produtos
de Angola para a Metrópole e para o Estrangeiro; Sousa Lara com o açúcar do Dombe; General
Faria Leal que está sepultado em Benguela. Todos eles passaram pela cidade da minha infância
e com a sua passagem pontilharam com obras vivas, ainda hoje, um período da vida benguelense que
a projectou para sempre na história de Angola.
2 - Benguela foi a primeira cidade de Angola que teve luz eléctrica, água encanada e telefone.
Telefones esses que foram mais tarde levantados para irem servir Luanda. Benguela tinha um
grupo de homens que pertencia ao Grémio Luzitânia, que tanto fizeram por ela, que é como quem
diz, por Angola. Benguela foi a cidade de onde partiu a ideia da criação de um imposto para
a construção de um Palácio de Comércio, que mais tarde deu origem à criação, à construção de
outros Palácios de Comércio, espalhados hoje por toda a Angola. Foi a primeira cidade a ter
um Jardim-Escola. Benguela, não tendo um campo de aviação em condições, em arrancadas
bairristas, de cunho puramente regional, conseguiu, da bolsa particular, fundos para a
construção do que é hoje um verdadeiro Aeroporto, o nosso magnífico DOKOTA.
Benguela, a cidade de quem o Governador Marques Mano, falando na Câmara Municipal da cidade,
afirmou um dia:
3 – Benguela é uma cidade tão democrática que, antigamente, a Direcção da Associação Comercial
ia cumprimentar a Direcção da Associação dos Empregados de Comércio, no dia do aniversário desta
e igualmente os empregados retribuíam, quando a patronal festejava o seu. É até uma cidade
onde as duas Associações ficam frente uma da outra, e bem perto, uma rua apenas as separa, como
que querendo dizer que os revezes da vida por vezes levam os sócios da patronal para a dos
empregados, como que a indicar que a vida faz por vezes os homens transitarem de uma para a
outra, descendo a ladeira da estrada da existência.
Tão democrática, repito, que o Director do Caminho de Ferro de Benguela vinha de comboio do
Lobito, para conferenciar com o Governador do Distrito, trazendo a sua bicicleta no comboio e
seguindo para o Palácio de Governo, pedalando debaixo das frondosas sombras das árvores da
cidade. Tão democrática, que o Governador, depois de encerrado o expediente, ia para a
cervejaria do Madeira jogar os dados com os frequentadores habituais e ali ouvia de perto
todas as reclamações dos habitantes. Onde, ao meio-dia, uma peça dava o tiro anunciador
da hora, até que um dia, de tão velhinha, rebentou e nunca mais anunciou a hora de largar
o trabalho. Onde a Câmara tinha um belo landeau puxado por rica parelha de muares
para irem buscar os vereadores para as sessões. Onde havia uma parteira velhinha, Palmira
Capela, que pôs tanto menino no Mundo, e acudia pressurosamente noite e dia às parturientes,
no seu carrito puxado a mulas.
4 – Foi Benguela a primeira cidade de Angola a ter um dispensário de puericultura para os
nativos. Foi Benguela que, numa arrancada brilhante, construiu um dos maiores hotéis de
Angola – o MOMBAKA. Foi Benguela que teve a primeira estação emissora de rádio – o Rádio
Clube de Benguela – de toda a Angola. Onde o asfalto se aplicou com antecipação. Onde o
Chiquito e o Boy, africanos das famílias mais tradicionais de Angola, davam as suas rebitas de
elevada organização. Onde havia homens de fôro de valor e talento superiores da categoria de
um Dr. Amílcar Barca Martins da Cruz, Dr. António Durães e Dr. Aguiam.
5 – Houve uma altura em que, quando o Caminho de Ferro de Benguela estava numa situação
financeira muito crítica, no tempo em que era Director Mariano Machado, foi Benguela quem
resolveu sugerir e permitir um aumento de tarifas, mas destinando-se esse aumento à compra
de material circulante, para o que o valor do aumento das referidas tarifas era separado da
receita geral. Onde no dia do aniversário da Implantação da República, 5 de Outubro, se
organizavam cortejos cívicos, em que tomavam parte todos os habitantes e autoridades, e iam
junto do Governador apresentar cumprimentos para depois dispersar.
Benguela, que no tempo do célebre movimento da conversão da moeda se manteve íntegra, sendo
preciso vir de Luanda como emissário o velho Joaquim Faria – fundador de “O Comércio” – para
se abrirem os estabelecimentos comerciais que se encontravam encerrados há mais de dois meses.
6 – Benguela de Roberto Silva e do Mário Araújo, pintores. Benguela do Aires de Almeida Santos
e Alda Lara, poetas. Do Ralph Delgado, historiador. Do Tadeu Bastos, escritor. Do Gastão
Vinagre, do Albuquerque Cardoso – que lá publicou o primeiro jornal desportivo de Angola -, do
Américo Aleixo, do Centeno, do Carmona – do monóculo – do Dr. Fausto Frazão, o autor da famosa
letra da não menos famosa canção “Coimbra, menina e moça”. Benguela das Pescarias e das
Traineiras, da Lupral e das fábricas de conservas, da Metalúrgica do Guerra, que tantas e
tantas fábricas de desfibra de sisal construiu. Das fábricas de refrigerantes, da velha
Alfândega por onde passaram milhares e milhares de toneladas de borracha, nos primeiros
tempos da colonização. Benguela dos dias de São Vapor, em que as carreiras que faziam
escala na cidade eram anunciadas, ao chegarem os navios, por um tiro de peça.
Benguela da Igreja de Nª Sª do Pópulo, o mais antigo monumento representativo do barroco
colonial da África Ocidental, hoje considerada Monumento Nacional com mais de 200 anos e que
tem um altar todo em prata.
Benguela do Vale do Cavaco, de superior importância, a maior estufa natural de Angola, como
alguém já lhe chamou.
Benguela do PORTUGAL, clube da bola de que foi sócio nº 1 o Joaquim Branco, que adoptou há
mais de 40 anos, as cores na camisola às riscas pretas e brancas, símbolo de união entre
duas raças.
Benguela do Padre Scherring, do Professor Santiago da Escola da Liga, do Correia da Silva,
poeta, da morena Esperança, do Ramos, chófer do Palácio, do maxibombo das colónias balneares,
das mangueiras frondosas, das pitangueiras, fruta-pinha e sápe-sápe, das serenatas em noites
de luar, do pôr-do-sol no Sombreiro, dos passeios ao 27 – Damba Maria, que nome tão lindo
escondendo uma lenda não menos linda -, do Bairro do Benfica e da Rua 5 de Outubro, do Cassôco
e do Casséque, da Massangarala e do Quioche, das cajajeiras e dos quintalões – eu daqui, de
longe, te saúdo.
Benguela, a terra em que nasci.
(A música vai-se apagando em fundo e é substituída pelo dedilhar de um quissange. Vai-se ao Bar Guimarães, pedem-se umas ostras e mariscos, bebe-se cerveja e comentam-se as comemorações com que Benguela afirma a toda a Angola a sua vitalidade. Diz-se mal da Câmara, dos homens mais representativos da cidade, porém... colabora-se.) |
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